Valmy 19 de setembro de 1792
Minha amada, hoje estĂĄ fazendo 2 meses que chequei ao fronte, e a saudade que sinto, atormenta meus sentidos. Faz meu coração gritar incessantemente teu nome, Isabelle. Calo-me com o silĂȘncio que produz meu pensamento, e ao mesmo tempo, clamo por tua presença.
Sinto tua pela ĂĄ minha, num desejo que devora por inteiro meu intimo.
Sinto falta da maciez de seus beijos, onde mergulhava meus lĂĄbios lentamente, saboreando cada sensação, entregando-me ao delĂrio do amor.
Sinto falta de seus cabelos, que desciam sobre mim como um véu exuberante, quando nos amåvamos intensamente, embriagados pela nossa paixão.
A distĂąncia me castiga de tal forma, que faz estes dias parecerem uma eternidade.
NĂŁo sei mais quem eu sou neste lugar inĂłspito, onde a morte se esconde em cada sombra.
Minha tropa estĂĄ desfalcada.
JĂĄ estamos sem suprimentos, e a comida estĂĄ cada vez mais escassa.
Este Ă© o Ășltimo frasco de nanquim que me resta.
Talvez esta seja a Ășltima carta que lhe escreva.
Todos os dias eu leio e releio a Ășltima carta que me enviastes.
O perfume que deixastes nela, no qual o aroma se torna mais doce a cada linha, alimenta meu espĂrito.
Me faz relembrar dos momentos que passamos juntos.
Confesso-te que muitas linhas jĂĄ estĂŁo borradas, manchadas pelo pranto de minhas lĂĄgrimas, que brotam em meu rosto, me fazendo recordar de cada beijo e de cada abraço. Das juras de amor que fazĂamos, contemplando as estrelas de um cĂ©u generoso, que sempre presenteava-nos com as estrelas mais brilhantes, e fazia o sol despertar no horizonte como uma gigantesca rosa flamejante, nas doces manhĂŁs em que acordĂĄvamos com nossos corpos entrelaçados, transpirados de amor.
SĂŁo estes momentos, Isabelle, que me faz beijar estas linhas, devotamente.
NĂŁo sei mais por quanto tempo irei suportar esta dor.
E saber que esta dor me mantém vivo, me då esperanças.
O desejo de tocar-te novamente e tĂȘ-la por inteira em meus braços.
à este desejo que me mantém vivo neste inferno impetuoso.
Lembra quando lĂamos o poema de Dante e ficĂĄvamos imaginando como seria o inferno? Pois este Ă© tĂŁo inquietante quanto o descrito na divina comĂ©dia.
Se pelo menos houvesse purgatĂłrio.
O Ășnico som que se ouvi aqui, sĂŁo os gemidos de dor e sofrimento, lamentaçÔes e desespero.
Todos estĂŁo morrendo.
Os que nĂŁo morrem nas trincheiras, morrem pelas pestes que se impregnam neste lamaçal. Entre uma tempestade e outra, uma vida se apaga, junto com o colorido dos cĂ©us, que desaparece subitamente, quando tomado pela fĂșria das batalhas.
Onde o barulho estridente dos canhÔes mistura-se com os brados dos trovÔes.
Que ao relampearem nos céus, refletem a silhueta da morte em todos os cantos.
As vezes eu tapo os ouvidos e fecho os olhos.
Neste sĂșbito instante, eu vejo-te, Isabelle.
Sou capaz de ouvir a tua voz e sentir o toque de suas mĂŁos, acariciando meu rosto.
Só percebo que não é real, quando abro os olhos e volto para este limbo, onde a morte embala as almas em um berço perpétuo.
Nos Ășltimos dias tivemos um lampejo de esperança.
Uma de nossas tropas vindas do norte, alojou-se aqui.
Apesar de famintos e cansados, cantam incessantemente o canto da revolução.
Aquela canção que ouvimos em Paris. Lembra?
Eståvamos em frente å Notre Dame, quando o exército de Marsellha entrou na cidade, entoando-a bravamente.
Dizem que foi um oficial da unidade de Estrasburgo que a escreveu.
Ao menos alimentamos o espĂrito incansĂĄvel com este hino de esperança.
Em meus olhos hĂĄ uma cortina de sangue, estou cansado destes massacres.
Até quando durarå esta luta?
A cada dia chegam novos rostos, e os mesmos se vĂŁo, em questĂŁo de dias.
Quantos mortos mais serĂŁo necessĂĄrios para cessar esta guerra?
Estou cansado de lutar, estou tĂŁo cansado meu amor.
Espero que o mensageiro consiga entregar-te esta carta.
Se nĂŁo receber mais notĂcias minhas, nĂŁo alimente esperanças.
Seja forte, meu amor
Sei que serĂĄ difĂcil aceitar este propĂłsito, mas nĂŁo irei iludir-te, Isabelle.
Juramos contar a verdade um para o outro, nĂŁo importassem quais circunstancias fossem.
HĂĄ trĂȘs dias fui atingido no peito com um tiro de mosquete.
Fui surpreendido quando voltava para o abrigo.
Um pequeno descuido que agora me custa a vida.
A bala estå alojada perto do coração.
Os remédios estão acabando e o médico teve de ir para o outro fronte, pois lå hå muito mais feridos que aqui, entre eles um general, que precisa urgentemente ser operado.
Havia conseguido estancar o sangue, mas esta manhĂŁ o ferimento voltou a sangrar, e uma febre tomou meu corpo hĂĄ poucas horas.
Acho que nĂŁo tenho muito tempo, por isso quero dedicar cada segundo escrevendo-lhe estas notas, meu amor.
Quero que saibas, que a dor que sinto em meu peito, que feri-me como um punhal cruel. NĂŁo se compara com a dor da distĂąncia.
A dor de nĂŁo poder beijar teus lĂĄbios no meu Ășltimo suspiro, que para mim seria como mil sĂłis iluminando a escuridĂŁo.
à com lågrimas nos olhos que me despeço, Isabelle, mas lågrimas de alegria, por saber que nosso amor atravessarå os séculos.
Quando na Ășltima carta me dissestes, que carregavas em teu ventre, o fruto do nosso amor, senti-me, eu, o ser mais completo do universo.
Pela primeira vez eu entendi o significado da vida.
Me proporcionasse o momento mais glorioso que um homem pode ter, minha amada.
Quero que diga a ele, ou a ela, que lutei e morri por nossa påtria, e honrei-a, até o fim. Diga que não fui nenhum herói, mas que também não fui covarde.
Diga que a felicidade que senti, ao saber que seria pai, foi o sentimento mais nobre que tive em toda minha vida.
Meu amor, que esta criança, este fruto que agora habita tua essĂȘncia, de alguma forma, supra minha falta, e que todos os momentos que tiverem juntos, sejam de extrema felicidade e alegrias.
Obrigado, por agregar-me a tamanha virtude.
SĂł lamento estar longe dos teus braços e nĂŁo sentir o Ășltimo afago do teu peito.
Saibas que neste momento, nĂŁo sinto dor alguma.
Se pudesses ouvir, ouviria a canção corajosa que agora ressoa em toda a planĂcie, como uma ĂĄguia, que corajosamente lança-se ao cĂ©u, iluminado de esperança.
Os homens voltaram a cantar.
Sinto em meu Ăąmago, que seremos vitoriosos.
Este sacrifĂcio nĂŁo serĂĄ em vĂŁo.
Quem luta pela liberdade merece ser coroado com a vitĂłria.
Despeço-me, minha amada, deixando nestas frases meu Ășltimo adeus.
Que esta Ășltima carta sobreviva, estendendo-se nas cortinas do tempo, gravando em suas eternas linhas, a prova real da existĂȘncia do nosso amor.
Beijo-te com meu espĂrito, que agora se liberta, buscando encontrar a luz
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